O socó embrulhado num farrapo nostálgico do céu, que de certo ele roubou, lá se vai, assobiando sentidamente a sua grande saudade, em demanda de outra lagoa.
À tarde já ruboriza os contornos acinzentados, meditativos, dos capões, que vestem pesadamente os cerros próximos, quando o assobio dele, que voa baixo, abanando desanimadamente as azas moles, se encomprida por aqueles ermos sonolentos numa dolorida nota de despedida. Aquela melodia muito langorosa chora a mágoa das lagoas de águas paradas, sismarentas, carreia a tristeza daqueles ermos inconsoláveis, e, nessa viagem melancólica, vai alferjando toda a tristura e quieteza que encontra no ar pensativo das tardes enevoadas, abatidas...
E o socó lá se vai levando saudade...
La se vai sangrando o grande coraão da natureza, que se prosta como se tivesse rezando, pedindo consolo, desabafando...
Por isso o socó é o símbolo da nostalgia. E´a saudade viajando...
E´a peregrinaão alada. Mansa e quase subtil, desse sentimento indefinível, vago, esquisito, muitas vezes inexplicável e outras até absurdas e dolorosas, mas sempre bom, balsâmico, macio como penugem, que se chama saudade.
O socó, esse eterno namorado do azul...
Esse farrapinho do céu, caído e sofrendo na terra...
Esse sonhador impenitente, mas inofensivo, que perscruta com olhar amortecido e interior, no reflexo marulhento das águas, o céu distante, na esperança e ilusão de que o infinito inalcanável esteja ali mesmo, bem pertinho, desdobrando sobre o lençol borbulhante das águas mansas.
Embriagadora miragem líquida, de encanto suave, sem o funesto logro da verdadeira. Encantadora, carinhosa miragem, que lhe dá o que está la tão longe, fora do alcance de suas azas frágeis, inatingível; que lhe da menor que a sua pupila, contemplativa, o infinitamente grande, e tão perto, que o seu bico pega o longinquamente perdido.
E ele ali fica, à borda umida da lagoa, esquecido horas a fio, trepado desengonçadamente ora numa, ora noutra das suas pernas longas.
De quando em quando, desperto, enfia o comprido bico na água quieta, numa carícia leve, fluida, quase abstrata, retomando logo depois maquinalmente a mesma atitude de êxtase, de enlevo respeitoso, místico ...
E ali fica, cabisbaixo e mudo, afundado apaticamente no seu ardente ... sonho aquático ....
O socó, afogado no seu grande sonho interior, cisma ...
Além de amar faquiricamente, desejar muçulmanamente, de querer sem os arroubos violentos, passionais, da conquista, é um astrônomo às avessas...
Sonha do alto olhando para baixo, para as poças sonolentas presas nos barrancos , tapados de capim alto.
Despreza a visão despeada, atrevida, desvairada das alturas. E ele, pássaro humilde e tímido, vivendo uma vida quase diluída, de penumbra, habitando, de preferência, os lugares sem dono, sem vida , mas fartos de poesia embaladora das águas sem caminho, resignadas, sente-se com certeza o dono de toda aquela grandeza discreta .... conformada.
E há de ser por isso que ele a deixa, quando tem de partir ...com toda a mágoa traduzida naquela modulaão tristonha, queixosa, de que vai embora chorando ...
Pastoreja morosamente as águas, com a eloqência religiosa e muda do seu platonismo de absorto, de recorrente estático de águas adormecidas.
Domina pela contemplaão, pela dinâmica de pudica inércia.
E a gente não sabe mesmo, afinal a que está ele adorando; se ao céu pendurado no infinito, que está boiando no espelho bambo das águas claras; se a estas mesmas águas preguiçosas, que se balançam quebradamente, em ritmos curvos, perversos, na sede , a sua luzida superfície.
Estes dois amorosos constantes,brincam,namoram-se, acariciam-se e enleiam-se, ondulantemente no mesmo coxim voluptuoso; e o socó ali se planta a vida toda, talvez querendo ser um deles, para participar daquela felicidade, talvez querendo ser um dos dois ou ate´mesmo amante dos dois...
Talvez ... A gente não sabe...
Quem sabe quanta coisa o socó deseja, quer?!...
Pena volante presa também, torturantemente, ao grilhão do destino.
A sua sina até se parece com a da gente, mísera carcaça humana, rastejando vilmente na papa peganhenta da terra.
E´que havemos nós de esperar, se ele, que voa, que é quase um pedacinho do céu, também sofre, também é infeliz, também é um perpétuo desejando ?! ....
Destino ...
Palmas, setembro de 1933
Observação: trata-se de escritor que usa muito a reticência. Segundo observaão do Dr. Alvir Riesemberg isso se deve à influência telúrica E´a visão do desdobrar infinito das coxilhas que se sucedem na campanha palmense. (Joaquim Osório Ribas)
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Texto Maravilhoso!!! Obrigada, Joaquim, pelo envio. Amei!
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